20.9.04

Darekon

Quando analisou a estatueta com os dragões, Gaspar pareceu lembrar alguma coisa a respeito. Mais tarde, durante a viagem para Dinar, quando perguntado por Mescalina, ele contou uma estória que tinha ouvido de um ex-sacerdote em Vaierna:

Há muito tempo atrás, quando Haradrynn ainda era jovem, as terras tinham outra forma e o Império a todas cobria, e todos respeitavam e louvavam a Lothar, houve um sacerdote, cujo nome se perdeu com o tempo, que em sonhos recebeu de Deus a missão de viajar para o oeste. Ele foi o primeiro Paladino, o primeiro guerreiro a receber as revelações diretamente dos deuses - ou pelo menos assim me foi dito.

Ele deixou, sem saber, um filho no ventre de sua mulher. Ela era filha de pescadores, e morava sozinha numa casa à beira-mar, visitada pelos pais e pelos tios algumas vezes. Mas não se sentia só, pois naquele tempo seu povo ainda sabia conversar com os animais, e ela falava muito com as criaturas do mar e da areia, principalmente as conchas, que contêm espíritos do vento, suas melhores amigas. Por isso, no dia do parto, quando a criança ficou presa em seu ventre, ela estava só, e nenhuma das criaturas do mar e da areia sabiam o que fazer ou como ajudá-la. Ainda assim as conchas sussurraram-lhe que tudo ficaria bem, pois o céu enviava ajuda.

Foi assim que, pouco depois, uma linda jovem de longos cabelos dourados surgiu na cabana.
"Sua criança não sai," disse ela, "porque tem os olhos voltados para o céu e não quer pôr a cabeça na terra, nem quer ver o sangue derramar. Vira-te que ele sai."

E assim ela fez, e assim Mythotin, amigo dos dragões, veio ao mundo. Porque os dragões vieram à sua tenda quando ele tinha acabado de nascer, pela primeira vez eles pisaram em Heshna, e lhe trouxeram lembranças de seu pai, que tinham conhecido no além-mar; traziam também conhecimento imenso que, por muitos e muitos anos, compartilharam com o povo da época, que era imortal.

Quando Mythotin já era um homem, o dragão a quem chamavam de Drearod (o relêmpago celeste), seu grande amigo, em seu vigésimo primeiro aniversário, lhe deu de presente uma pequena estatueta, com a forma de quatro cabeças de dragão, voltada cada uma para uma direção, e colorida de maneira diferente.

"A cabeça azulada, da cor dos oceanos, dos rios, dos mares e dos relâmpagos - que os relâmpagos só parecem de outra cor para olhos humanos - aponta para o Sul, para onde correm os rios. A branca, da cor da neve, das luas - ao menos agora - e das vestes dos magos, para o Norte, terra do frio. A vermelha, que é o fogo, a brasa e o sangue, da cor do céu no poente, vira-se para o Leste, onde o sol descansa ao fim de seu percurso. E a amarelada (aqui, observa Gaspar, alguns diriam dourada), que muito mais que ouro e riquezas, é o sol e a luz que cobre os céus, é o Oeste do sol nascente, o Oeste, da Revelação, Oeste que nos enviou, reino dos deuses e da bonança."

"Pois vinde, pequenino. Saiba que sempre que tu ergueres esta estátua e tiveres, a face azul voltada para o sul, a branca para o norte, a vermelha para o leste e a amarela para oeste, aos dragões, teus amigos, poderás imediatamente encontrar."

(Nota: Em Haradrynn chama-se de pólo sul o pólo para onde as correntes eletromagnéticas convertem, isto é, para onde as bússolas apontam, o que nós chamamos de pólo norte. Assim, para eles, o oeste é onde o sol nasce, e o leste, onde o sol se põe.)

Mas Mythotin passou a maior parte da vida junto aos dragões, e só precisou da estatueta quando a guerra eclodiu. E ele sempre soube que ela viria: isto lhe foi dito num sonho. "Quando a Lua pintar-se de sangue e os filhos abandonarem suas mães, a fúria dos deuses cairá sobre os povos." E assim foi que, mesmo sabendo o que aconteceria, Mythotin deixou o lar para conhecer o mundo ao lado de Drearod, e a Lua, perfurada pela lâmina do jovem e amaldiçoado Ethos, pintou-se de sangue, e a guerra chegou a Lethros.

Foi por saber de antemão da batalha, como costumava saber de antemão tudo, que Mythotin, mesmo amando seus amigos dragões, os enfrentou nos tempos de guerra, ao lado de Ethos e dos outros 10 heróis, portando a Espada da Revelação, e vindo inclusive a matar Drearod - uma história que eu teria prazer em contar, mas confesso ainda não ter ouvido em detalhe suficiente. Dizem que ele sabia sempre onde os dragões se encontravam, e a quem buscavam alvejar com suas garras; que podia comandar cem homens como se fossem um só, e que enxergava como se tivesse olhos nas costas; nenhuma miragem enganava seus olhos, nenhum golpe tocava sua pele, e nenhum homem hesitava quando encorajado por sua voz, que era como um trovão.

Foi ele quem revelou a Ethos a direção do reino celeste, lar dos dragões, e quem lhe preveniu de que a desgraça aguardava quem cruzasse o oceano; por isso não o acompanhou e aos outros, ficando na terra firme, fitando o céu, enquanto aguardava a vinda dos Quatro Reis. Uns dizem que ele tentou impedi-los, mesmo sabendo que inevitavelmente falharia; outros, que tudo que fez foi pedir desculpas pelo sangue derramado, e agradecer aos céus pela vida que vivera. Era exatamente como esta tua estatueta, Mescalina, minha jovem, a que ele portava. "Darekon", era como o chamavam: aquele que busca Dragões. E eu contaria mais sobre ele, seus feitos junto aos demais heróis, e sobre outros que, dizem por aí, viram ou tiveram estatuetas assim e, como ele, buscaram dragões. Mas a Lua Branca já vai alta no céu, e é tempo de repousarmos bem, se quisermos amanhã chegar mesmo a Dinar.